Texto de Ana Carolina C. e Tatiana Trindade
Viver e deixar de viver é que são soluções imaginárias. A existência está em outro lugar. André Breton
Conta o gênesis, primeiro livro bíblico, que José filho mais moço de Jacó fora vendido como escravo para o Egito pelos seus próprios irmãos. Sua condição de escravidão terminou devido um prodigioso dom divino: o de interpretar sonhos. Narra a história que o Faraó perturbado por sonhos recorrentes os quais ninguém conseguia dizer o que significava, teve em José, suas respostas. A clareza com que este interpretou o sonho do Faraó fez com que o rei egípcio considerasse José como o homem mais capacitado para guiar o Egito nos próximos 14 anos (ver mais em Gênesis 41-44). É interessante notar que na Bíblia, há diversas narrativas que mostram os sonhos como um veículo de mensagem, presságio, alerta de Deus para os homens.
Para o pai da psicanálise, Sigmund Freud, os sonhos representam uma mensagem do seu inconsciente que revelará os seus desejos reprimidos ou questões que você vivenciou no seu dia, as quais o seu consciente gravou e durante o sono lança as imagens para o seu inconsciente. Depois de Freud outro psicanalista que se inclinou para o estudo dos sonhos e seus significados foi Carl G. Jung, ele afirmou que os sonhos eram veículos do inconsciente que traziam respostas simbólicas para resoluções de questões psicológicas profundas. Foram seus estudos que possibilitaram a identificação- da simbologia que determinado elemento presente no mundo onírico poderia significar.
Guillaume Apollinaire (1880-1918), foi o primeiro a utilizar o termo surrealismo para descrever a arte dedicada a expressar o mundo psíquico e onírico. No entanto, foi André Breton (1896-1966), influenciado pelo pensamento de Freud sobre a importância do desempenho do inconsciente no comportamento humano, quem escreveu o Primeiro Manifesto do Surrealismo. Esses dois autores, poetas e dramaturgos reivindicaram uma liberdade artística em que seria possível retratar os devaneios inconscientes e os sonhos no teatro francês da época.
De uma maneira típica para um movimento de vanguarda, o surrealismo começou como um ataque frontal à sociedade. A nova ideia era explorar o inconsciente humano para revelar os nossos segredos, desejos e instintos mais reprimidos. Repressão essa, construída ao longo da história e mantida pelas instituições sociais tais como os valores burgueses que exaltavam a família, igreja, escola, honra, trabalho, pátria e outros.

Nesse contexto, precisamos ampliar a noção do que seja a realidade. Sabemos que o Realismo enquanto movimento artístico buscava representar o mundo real tal como ele é, assim como seus contemporâneos de vanguardas – os expressionista e os futuristas- os artistas surrealistas consideravam as obras realistas de uma hipocrisia imensurável por tentar definir uma realidade aparente, que mostrava algo superficial como real. André Breton, em seu tempo, criticava o esforço dos realistas em mostrar como comum um estilo de vida que não era verdadeiro. (isso não se parece muito com os perfis de Instagram nos quais acompanhamos vidas perfeitas?)

É claro que essa busca resultou numa arte por vezes constrangedora, que promovia no espectador uma sensação incômoda permanente. Pois, ainda hoje utilizamos a sua forma adjetiva, surreal, para descrever tudo aquilo que para o nosso lado racional é considerado misterioso, estranho, esquisito, indomável, inexplicável e exagerado.

Como dito anteriormente Apollinaire foi o primeiro a usar o termo surrealismo, para descrever uma de suas peças: Les Mamelles de Tirésias – o texto apresenta uma mulher sem nenhum instinto maternal, essa peculiaridade faz com que caiba ao marido a tarefa de ter os bebês do casal, e ele os têm. O termo ressurgi em outro momento, quando elaborou o programa do balé Parade (1917). Nessa obra conjunta – representada pelo corpo de baile de Serguei Diaguilev – de Cocteau, Picasso e Satie, Apollinaire, descreve que ela “traduzia a realidade” num conjunto coerente de pintura, dança, mimo e arte plástica – uma peça de teatro total. Em vez de tentar imitar a realidade, ela a sugeria “por uma espécie de síntese – análise que abarcava todos os elementos visíveis e algo mais, se possível, uma esquematização integral que busca harmonizar as contradições ao mesmo passo que às vezes renuncia deliberadamente ao aspecto imediato do objeto.”

Em síntese no Teatro Surrealista:
- O dramaturgo devia evitar o realismo e não se preocupar com o tempo ou espaço convencional. Devia também confiar no automatismo psíquico, no desempenho desinteressado do pensamento advindo do instinto.
- Apresentava o sonho como verdade onipotente e portador das resoluções dos principais problemas da vida.
- O espetáculo combinaria vários elementos como o fantástico; a dança; a acrobacia; o mimo; o drama; a sátira; a música e a palavra falada.
- Cria as bases para o Teatro do Absurdo
Podemos compreender melhor sobre o pensamento surrealista na leitura do Manifesto de Breton. Nele podemos destacar:
- O enaltecimento da imaginação – aquilo que é vivido no mundo psíquico é tão ou mais real do que as crenças construídas na vida cotidiana. Só a imaginação abre os precedentes para ser o que desejamos.
- A loucura como a máxima representação da liberdade – só os loucos são capazes de conviver com as alucinações e ilusões tornando-as fontes de criação, eles não se preocupam em se adequar a uma sociedade que só é considerada “normal” por estar convencionada a todos os códigos sociais sem questionamentos.
- O reconhecimento da psicologia como uma ciência.
- A crítica do uso da lógica, do racional, da classificação para explicar a existência humana. No surrealismo nem tudo terá explicação, função ou sentido, as emoções, sensações e sentimentos que a obra causa no espectador bastam.
- A individualidade do ser e das coisas – tudo é por si só, nada deve uma explicação, a imagem pode ser algo que nossos olhos reconhecem, entretanto, uma descrição ou local não convencional, confundirá nossos sentidos.

Ou seja, como define o próprio Breton: “SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral”.
Não perca no próximo capítulo…

Para saber mais:
Aslan, Odette. O ator no século XX: evolução da técnica, problema da ética. São Paulo: Perspectiva 2005.
Carlson, Marvin. Teorias do Teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
Gompertz, Will. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do impressionismo até hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2013
Primeiro Manifesto Surrealista de André Breton